terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Aquíferos do Recife correm risco de salinização


Por Elton Alisson


 Os aquíferos do Recife (PE) correm risco de salinização e contaminação em razão da perfuração indiscriminada de poços tubulares privados na capital pernambucana nos últimos anos.
O alerta foi feito pelo professor Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências (IGc) da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas (Cepas), durante a 1ª Reunião de Avaliação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), realizada nos dias 28 e 29 de novembro em Bragança Paulista, no interior de São Paulo.
“Houve um aumento impressionante de poços tubulares no Recife para uso privado, com 100 a 200 metros de profundidade, que passaram a ser utilizados como fonte suplementar de abastecimento de água na cidade, principalmente pelas classes mais abastadas”, disse Hirata àAgência FAPESP.
“Devido a uma série de fatores, as águas desses poços e do aquífero têm ficado salinizadas”, afirmou o pesquisador, que coordena um Projeto Temático, financiado pela FAPESP, com o objetivo de avaliar a degradação das águas subterrâneas em Recife no contexto das mudanças climáticas globais.
O estudo é realizado no âmbito de um acordo mantido pela FAPESP com a Fundação de Amparo à Pesquisa de Pernambuco (Facepe) e a Agence Nationale de la Recherche (ANR), da França, e reúne, do lado de São Paulo, pesquisadores do IGc, da Escola de Engenharia de São Carlos da USP e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
De acordo com Hirata, uma das constatações feitas durante a realização do projeto, iniciado no fim de 2011, é que tem ocorrido mudanças no padrão de consumo e de interação dos moradores do Recife com a água nas últimas décadas.
A exemplo de outras capitais nordestinas, a cidade registra, desde o início da década de 1970, crescimento populacional e, consequentemente, aumento da demanda por água potável.
Segundo Hirata, o abastecimento público dos 3,7 milhões de habitantes da cidade é realizado pela Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) e baseado em fontes superficiais de água – como a de reservatórios –, que abrange a região metropolitana de Recife.
Uma pequena região na área norte da cidade e próxima a Olinda é abastecida por meio de águas subterrâneas, provenientes do aquífero Beberibe.
Em razão de secas severas, como a ocorrida entre 1998 e 1999, e de frequentes racionamentos de água, Recife aumentou o uso do já bastante explorado aquífero por meio da perfuração de poços privados, localizados, principalmente, na região central da cidade e em Boa Viagem, contou o pesquisador.
“Existem, aproximadamente, 13 mil poços privados em Recife; é a cidade brasileira com o maior número de captações de águas subterrâneas”, destacou Hirata. “A maior parte deles é ilegal, com existência desconhecida pelos órgãos administradores. Isso dificulta o planejamento, pelo Estado, de um programa de gestão dos recursos hídricos. Ao mesmo tempo, essa estrutura desconhecida garante a segurança hídrica da cidade, porque esse abastecimento complementar de água é fundamental em períodos de estiagem.”
Salinização dos aquíferos
Um dos principais problemas dos poços privados é que muitos se tornam salinizados e são perdidos e abandonados. Uma das prováveis causas da salinização é a intrusão de águas salinas do mar induzida pelo bombeamento desordenado.
O bombeamento dos poços faz com que as águas salgadas de canais e estuários, além de paleomangues (sedimentos que tiveram contato com águas salgadas, quando o nível do mar era mais alto), penetrem no aquífero, provocando sua salinização, explicou Hirata.
“Parte do aquífero de Boa Viagem, que é mais raso e de menor espessura, tem vários poços salinizados e abandonados”, disse.
“Uma vez salinizados os poços e o aquífero há pouco o que fazer. As tecnologias de dessalinização são limitadas e os sistemas de tratamento individual de água salgada de poços são muito caros”, ressaltou o professor do IGc-USP.
A pesquisa verificou que os proprietários abandonam os poços ou os aprofundam, até atingir os aquíferos Cabo e Beberibe – mais profundos que o de Boa Viagem –, quando constatam que suas águas ficaram salinizadas.
Além do aumento dos custos na extração de águas, os poços abandonados também têm sido responsáveis por conectar as porções mais rasas e salinizadas dos aquíferos com aquelas mais profundas e ainda preservadas, ressaltou o pesquisador.
Uma descoberta que surpreendeu os pesquisadores foi o resultado das medições da temperatura de recarga (temperatura inicial) desses aquíferos profundos – o Cabo e o Beberibe –, feitas por meio de medições de concentrações de gases nobres nas águas subterrâneas. Os resultados indicaram que essas águas são muito velhas.
A temperatura das águas de recarga dos aquíferos do Cabo e de Beberibe, por exemplo, era de 15 ºC, que coincide com o último período glacial da Terra e leva a crer que os aquíferos foram recarregados há 10 mil anos, estimou Hirata.
“Ninguém imaginava que essas águas, localizadas a menos de cem metros da superfície, fossem paleoáguas, ou seja, águas muito antigas”, disse.
Dependência comum
De acordo com o professor do IGc-USP, o problema da dependência de águas subterrâneas para garantir a segurança hídrica da população de Recife também é comum a outras capitais nordestinas, como Natal (RN) e Fortaleza (CE), e às metrópoles brasileiras, como Brasília (DF) e São Paulo, entre muitas outras cidades do país.
O caso mais crítico, segundo Hirata, é o de Natal, cujo sistema de abastecimento público é baseado em águas subterrâneas, mas com poços distribuídos na malha urbana da cidade.
Como a maior parte da malha urbana da capital do Rio Grande do Norte não conta com rede de esgoto, as águas dos aquíferos e dos poços de abastecimento público encontram-se contaminados por nitrato e, por isso, são impróprias para uso.
Segundo Hirata, na tentativa de solucionar esse problema, tem-se misturado água superficial – sem nitrato – à água dos poços para atender às necessidades da população. Em razão da falta de água superficial na capital potiguar, a quantidade de mistura é insuficiente para baixar os níveis de nitrato da água dos poços.
“A cidade de Natal está recebendo água contaminada hoje porque não consegue dispor de água limpa. Ela representa o extremo do problema da falta de água que aflige o Nordeste”, avaliou.
Já cidades do Sudeste como São Paulo dependem menos das águas subterrâneas, uma vez que a região metropolitana da cidade é abastecida por grandes sistemas de águas superficiais, como os de Cantareira, Cotia, Alto Tietê e Guarapiranga.
Estima-se, no entanto, que existam 12 mil poços privados em São Paulo, dos quais, a exemplo dos do Recife, metade é ilegal e que, juntos, retiram 10 metros cúbicos de água subterrânea por segundo, representando a quarta fonte mais importante de abastecimento da cidade, entre os oito sistemas hoje em operação.
Se por um problema de contaminação ou aumento do custo de extração essa fonte de abastecimento de água fosse perdida, a população ligada a essa rede fecharia seus poços e, imediatamente, migraria para a água da rede pública.
Essa migração de fonte de água poderia fazer com que o sistema de abastecimento da cidade, que atende hoje a população com 65 metros cúbicos de água superficial por segundo, entrasse em colapso, estimou Hirata.
“A segurança hídrica da cidade de São Paulo é frágil. É claro que a possibilidade de perder todos esses poços em um período curto de tempo, como o de um ano, é quase impossível. Mas existe uma fragilidade no sistema, porque não há políticas eficientes para águas subterrâneas na cidade, uma vez que elas não são vistas como uma fonte de abastecimento importante”, ressaltou Hirata.
Nesse sentido, a segurança hídrica da capital paulista e de outras cidades brasileiras, como Recife, está nas mãos de diversos usuários privados – os proprietários dos poços –, que, mesmo sendo ilegais, têm uma função importante porque diminuem a pressão por água do sistema de abastecimento principal, avaliou o pesquisador.
O papel desses atores no sistema de abastecimento de água das cidades brasileiras, no entanto, não está sendo avaliado corretamente, apontou. “A solução para o abastecimento de cidades como Recife e São Paulo não é esquecer a água subterrânea, mas somá-la às águas superficiais, porque são recursos muito complementares”, afirmou.
“Esse sistema integrado é uma das melhores estratégias que a própria natureza está dando para superarmos os problemas advindos das mudanças climáticas globais”, avaliou.
De acordo com o pesquisador, as águas subterrâneas representam o grande reservatório de água da Terra, sendo responsáveis por 95% da água doce e líquida do planeta, e são usadas por 2 a 3 bilhões de pessoas no mundo.
No Brasil, segundo ele, entre 35% e 45% da população utiliza água subterrânea e 75% dos municípios do Estado de São Paulo são abastecidos total ou parcialmente por essa fonte de água. “Apesar da importância desse recurso, ele não costuma frequentar, infelizmente, a agenda política dos órgãos decisores de gestão de recursos hídricos”, disse Hirata.

Fonte: Agência FAPESP

A responsabilidade com a qualidade da água termina na porta da rua.


“A forma de tratamento da água disponibilizada no Brasil se constitui, grosso modo, de processos mecânicos e químicos que visam reduzir a concentração de poluentes”, lamenta o farmacêutico.



“O déficit para o abastecimento de água potável é de aproximadamente 10%, se considerada apenas a presença/ausência da disponibilidade do serviço para o domicílio. No entanto, quando se leva em conta a adequabilidade/continuidade deste serviço, o déficit sobe para aproximadamente 40%, o que é extremamente alto.”
A constatação é de José Bento da Rocha, autor da dissertação de mestrado intitulada A regulação e a universalização dos serviços de abastecimento de água potável no Brasil, realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Segundo ele, em entrevista concedida à IHU On-Linepor e-mail, os dados disponíveis referentes à qualidade da água “revelam que a situação do abastecimento de água potável no Brasil ainda é muito preocupante”.Rocha esclarece que 33,9% dos domicílios brasileiros ainda estão enquadrados no conceito de “déficit intermediário sob a alcunha de atendimento precário”.
A discussão em relação à qualidade da água, assinala, “gira em torno dos 33,9% de domicílios enquadrados nesta categoria — se, na realidade, não deveriam se somar aos sem atendimento, pois são atendidos de maneira inadequada. Por outro lado, questiono: somente deveriam ser atendidos os domicílios em que é possível atendimento de qualidade (adequado) e o restante deveria ser deixado de lado? Ou é melhor atender precariamente do que não atender?”
José Bento da Rocha explica ainda que o tratamento da água no Brasil enfrenta problemas como tratamentos incompletos e até mesmo ausência de tratamento prévio. “Em uma realidade ainda bem distante da nossa, o ideal para garantir a qualidade da água tratada seria a adoção do padrão europeu (talvez alguns diriam ‘Padrão FIFA’) em que não é permitida a reservação de água (isto é, não se pode ter uma caixa d’água em casa) e que a obrigação do ‘fornecedor’ da água (seja privado ou público) é garantir sua qualidade até a torneira”, conclui.

José Bento da Rocha é farmacêutico graduado pela Universidade Estadual de Goiás – UEG, especialista em Controle de Tráfego Aéreo pela Escola de Especialistas da Aeronáutica – EEAR, pós-graduado em Direito Administrativo com ênfase em Gestão Pública, Regulador de Serviços Públicos e mestre em Saúde Pública com ênfase em Gestão e Regulação de Serviços Públicos de Saneamento Básico – ENSP/FIOCRUZ. Atualmente é coordenador de Monitoramento de Projetos da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do Distrito Federal – ADASA.

Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que os dados disponíveis sobre a cobertura de abastecimento de água potável no país revelam sobre o abastecimento e a qualidade da água brasileira?
José Bento da Rocha - Apesar de apresentarem fortes discrepâncias e, porque não dizer, deficiências, os dados disponíveis revelam que a situação do abastecimento de água potável no Brasil ainda é muito preocupante. Seja em relação ao aspecto quantitativo ou ao qualitativo. Quando se coloca em foco o déficit sob o prisma puramente quantitativo, chega-se a aproximadamente 10% da população brasileira excluída do acesso a esse bem essencial. Quando se adiciona o fator qualidade/continuidade da água disponibilizada, este déficit sobe assustadoramente para algo próximo de 40%. De todo modo, ambos são extremamente altos. Ainda no prisma qualitativo, um fator bastante controverso é a classificação adotada noPlano Nacional de Saneamento Básico – PNSB (que na verdade ficou conhecido comoPLANSAB e foi aprovado definitivamente em 06/12/2013), que reafirma um conceito de “déficit intermediário” sob a alcunha de atendimento precário.
A discussão gira em torno dos 33,9% de domicílios enquadrados nesta categoria — se, na realidade, não deveriam se somar aos sem atendimento, pois são atendidos de maneira inadequada. Por outro lado, questiono: somente deveriam ser atendidos os domicílios em que é possível atendimento de qualidade (adequado) e o restante deveria ser deixado de lado? Ou é melhor atender precariamente do que não atender? Ao que, utopicamente, deveriam existir apenas serviços com atendimento de qualidade, mas dada a dura realidade atual e todo o histórico que a precede, não se concebe deixar de atender parte da população, ainda que fosse para propiciar atendimento com água mineral ao restante.
IHU On-Line – Como o tratamento da água vem sendo feito no Brasil e qual o método correto de garantir um tratamento adequado da água? Quais são as

preocupações do país em garantir a água potável?

José Bento da Rocha - A forma de tratamento da água disponibilizada no Brasil, que deveria variar em função do enquadramento da fonte, diga-se qualidade original da água e/ou da solução adotada (se rede geral, solução alternativa ou individual), se constitui, grosso modo, de processos mecânicos e químicos que visam reduzir a concentração de poluentes (coagulação, floculação, decantação, filtração, desinfecção, etc.).
Entretanto, na prática, há problemas que vão desde tratamentos incompletos até sua ausência, ou seja, água disponibilizada à população sem qualquer tratamento prévio. Em uma realidade ainda bem distante da nossa, o ideal para garantir a qualidade da água tratada seria a adoção do padrão europeu (talvez alguns diriam “Padrão FIFA”) em que não é permitida a reservação de água (isto é, não se pode ter uma caixa d’água em casa) e que a obrigação do “fornecedor” da água (seja privado ou público) é garantir sua qualidade até a torneira.
No Brasil esta responsabilidade termina na porta da rua (Lei 11.445/2007 – Art. 3º – Para os efeitos desta Lei, considera-se abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infraestruturas e instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição).
Existem instrumentos coerentes para garantir a qualidade da água fornecida, a exemplo daPortaria 2914/2011 do Ministério da Saúde, mas sua fiscalização é deficiente e, ainda que não o fosse, haveria a possibilidade de contaminação na parte interna das casas, pois se pode afirmar, com certeza, que o percentual da população que lava regularmente suas caixas d’água, como recomendado, é muito baixo.
IHU On-Line – É possível estimar o déficit de água potável no país? Quais as razões

deste déficit em relação à qualidade da água?

José Bento da Rocha - No estudo realizado, chegou-se à conclusão de que o déficit para o abastecimento de água potável é de aproximadamente 10%, se considerada apenas a presença/ausência da disponibilidade do serviço para o domicílio (urbano ou rural). No entanto, quando se leva em conta a adequabilidade/continuidade deste serviço, o déficit sobe para aproximadamente 40%, o que é extremamente alto.
Em relação ao déficit de cobertura para o abastecimento de água potável, conclui-se que há uma série de complicadores para a sua extinção. Além das razões já apresentadas acima, podem-se citar problemas que vão desde a vontade política dos governantes, passando pelas dificuldades financeiras (alto custo), áreas de ocupação irregular (ausência de infraestrutura e alegada baixa capacidade de pagamento dos moradores) até deficiências relacionadas aos dados sobre esta cobertura (falta de padrão das pesquisas, foco na presença/ausência do serviço e não em sua adequabilidade/continuidade — deficiências estas que impedem o conhecimento realístico da situação e possibilitam, em caso de má-fé, o uso destes dados em manobras para manipulação de resultados nas estatísticas oficiais).
IHU On-Line – Por quais razões o acesso aos serviços de abastecimento de água potável no país ainda é restrito em algumas regiões? Em quais estados brasileiros o acesso à água é mais restrito?
José Bento da Rocha - Duas situações devem ser destacadas no que tange às questões regionais relativas ao déficit. A primeira é que, tanto na Região Norte, com a aparente abundância de água, como na Região Nordeste, com suas secas castigantes, há problemas sérios de abastecimento. Os estados destas duas regiões figuram, portanto, como os mais atingidos pelo déficit, sendo que no Norte o principal inimigo é o altíssimo índice de perdas, e no Nordeste, a escassez, além das deficiências estruturais nas duas regiões. A segunda situação é a questão relacionada às ocupações irregulares (áreas de favelas, invasões, etc.), que crescem exponencialmente e nas quais não há infraestrutura básica, muito menos qualquer planejamento prévio de expansão.
IHU On-Line – Como funciona o processo de gestão da água no Brasil e como avalia a maneira como vem sendo conduzido?
José Bento da Rocha - O processo de gestão das águas a partir da integração entre aAgência Nacional de Águas – ANA e os estados é, até certo ponto, satisfatório. O mais preocupante é que o Brasil ainda não valoriza, como deveria, o imenso patrimônio que possui em relação às suas águas. A errônea sensação de que a água é um bem ilimitado no país e a falta de instrumentos eficientes de monitoramento (georeferenciamento, telemetria, rastreamento de contaminações e contaminantes, etc.) são pontos bastante negativos desta gestão.
IHU On-Line – Quais têm sido os principais investimentos e políticas públicas paragarantir a qualidade da água no Brasil?
José Bento da Rocha - A definição dos parâmetros de potabilidade/qualidade da água a serem adotados, conforme a Portaria 2914/2011 – MS, e suas implicações em relação à estrutura a ser utilizada para este fim, como Secretaria de Vigilância em Saúde – SVS/MS,Programa Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano – VIGIAGUAFundação Nacional de Saúde – FUNASAAgência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, entre outros, são marcos importantes. Entretanto, não garantem, por si mesmos, esta qualidade. Fatores como o excesso de agrotóxicos utilizados nas plantações (que de alguma forma chegam até os mananciais) não são adequadamente analisados na maioria dos casos.
IHU On-Line – Como a universalização da água é contemplada na Lei 11.445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico?
José Bento da Rocha - A Lei 11.445/2007 traz um novo paradigma, quando aponta para a universalização dos serviços como um de seus princípios. A despeito de que no Brasil a previsão em lei não garante sua execução, o abastecimento de água é o serviço mais adiantado nesta empreitada. E também neste contexto, a regulação ganha peso como possível instrumento de incentivo e/ou coerção ao cumprimento das regras definidas em várias frentes legais e regulamentares.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
José Bento da Rocha - Os estudos realizados neste trabalho (A regulação e a universalização dos serviços de abastecimento de água potável no Brasil) evidenciaram a importância do abastecimento de água potável para o bem estar da população. Ressalta-se que as dificuldades de acesso são maiores do que a presença ou ausência de rede, poço ou qualquer outra forma de disponibilização da água. Além da presença de um sistema ou estrutura de abastecimento, a água deve estar disponível, com qualidade e ter viabilidade econômica para o usuário. Por todo seu potencial de impacto em aspectos como saúde, trabalho e dignidade na vida das pessoas, o acesso à água é de fundamental importância.
O déficit de cobertura ainda existente para abastecimento de água potável é preocupante tanto no sentido quantitativo quanto e, principalmente, no qualitativo. No olhar sobre o aspecto quantitativo, fica evidente que uma parcela considerável da população brasileira, próximo de 10%, se considerados os meios urbano, rural e as comunidades não regularizadas, está excluída do acesso ao qual tem direito. Já com o foco voltado para uma visão qualitativa, é preocupante perceber que dentre os brasileiros que recebem o serviço, mais de um terço não o recebe de forma adequada, ou seja, nos padrões de qualidade que deveria receber.
Saneamento
Outro aspecto observado neste trabalho é que a qualidade dos dados referentes aos serviços de saneamento em geral, inclusive de abastecimento de água potável, apresentam um baixo grau de confiabilidade. Este problema envolve desde a forma como são propostas e realizadas as pesquisas do setor, até a falta de conhecimento técnico dos participantes que prestam, voluntariamente, as informações quando requeridas.
A regulação da prestação dos serviços de abastecimento de água potável pode e deve assumir papel primordial frente à extrema complexidade técnica, política e econômico-financeira que envolve a universalização do acesso, seja equilibrando as forças, seja proporcionando meios como estabilidade e segurança jurídica para que os entes responsáveis possam desenvolver bem suas funções. Também se espera que a ação regulatória promova um contrapeso autônomo, dotado de técnica e isenção visando manter o equilíbrio entre as diferentes forças que influenciam na prestação dos serviços regulados.
Universalização da água
À luz da Lei 11.445/2007, que aponta para a universalização como um de seus princípios, e considerando que esta necessidade reforça o papel da regulação como um instrumento importantíssimo de propulsão para o alcance deste objetivo, aponta-se que o exercício de uma regulação efetiva, dotada de seus elementos essenciais (altíssima qualificação, autonomia e independência, etc.) tende a contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, propiciando serviços abrangentes e de qualidade a preços módicos.
A pesquisa realizada envolveu uma extensa análise dos contratos de concessão dos munícipios escolhidos, debruçando-se sobre como está a participação do regulador na relação concedente—concessionário. Este trabalho foi importante por gerar conhecimento nesta área em que há institucionalidades tão variadas, bem como ausência de um marco regulatório nacional bem definido.
Da análise dos contratos de concessão selecionados, infere-se que a regulação exerceu baixa participação no que concerne ao seu papel de compelir os regulados a buscarem este importante princípio legal. Casos como o de Campos do Jordão e de Manaus são mais preocupantes, o primeiro pela ausência de metas para a universalização e o segundo por ficar claro que a empresa (neste caso privada) vem descumprindo as metas acordadas e, ainda assim, conseguiu a prorrogação do contrato até 2045.
Concluiu-se neste trabalho que apesar de ter sido criado todo um aparato legal e técnico destinado às atividades de regulação de serviços de saneamento, a universalização das redes de abastecimento de água ainda não foi priorizada como uma meta urgente por entes reguladores. Desta conclusão não se infere que as agências reguladoras estejam deixando de atuar, porém ressalta-se que estão em um nível abaixo do que podem e do que, naturalmente, se espera delas.
Desafios
Vale considerar que a presença da regulação no Brasil ainda é muito recente e que já evoluiu grandemente; assim, o cenário é de boas expectativas em relação ao futuro. O que este estudo alerta é que as agências devem se preparar política e tecnicamente (com grande prioridade para a formação técnica) para superar os desafios postos à sua frente e assumir seu lugar na condução das relações e manutenção do equilíbrio na prestação dos serviços regulados. A atuação do regulador em abastecimento de água deve ir muito além de ser um mero observador das deficiências de qualidade e do déficit de cobertura. Como agente externo, de estado, deve compelir, sempre que necessário, os agentes de governo a cumprirem seu papel em benefício do cidadão, que é o mantenedor do estado.
Finalmente, adverte-se que há que se encarar o problema da falta de acesso com a determinação que sua complexidade exige. As desculpas que se renovam a cada momento institucional do Brasil atendem bem a certos interesses, mas que, com toda certeza, não são os dos usuários excluídos. Mesmo que estes consigam se munir de soluções improvisadas e, via de regra, inadequadas, o que esperam e, de fato, têm direito, é receber um serviço de qualidade e universalizado.

Fonte: EcoDebate  publicado pela IHU on-line.