Por: Wolfgang J. Junk, Maria Teresa Fernandez Piedade e Ennio Candotti
O problema da disponibilidade da água no Brasil ganha, mais uma vez,
as manchetes. Neste início de 2014, após inundações catastróficas em
parte do Sudeste e na área central do país, além da inundação secular
que atingiu por alguns meses Rondônia, Acre e partes de Mato Grosso, a
seca se abateu não no Nordeste, como historicamente acontece, mas no
próprio Sudeste. A escassez de água no sistema de represas da
Cantareira, em São Paulo, criou cenários alarmantes para o abastecimento
da capital e de sua região metropolitana.
Para acalmar a população, autoridades dizem, reiteradas vezes, que
não haverá racionamento de água na região de São Paulo e que grande
parte do problema se deve à falta de chuvas e ao desperdício. No extremo
oposto do país, a inundação que levou ao transbordamento do rio Madeira
foi atribuída a uma intensidade excepcional de chuvas na cordilheira
dos Andes, eximindo de qualquer responsabilidade as companhias elétricas
gestoras das represas de Jirau e Santo Antônio. Foi esquecido que, logo
no início da enchente, os administradores das duas represas culparam um
ao outro pela falta de previsão dos efeitos de chuvas pesadas.
O governo, naturalmente, assumiu o compromisso de financiar ajuda
imediata para as vítimas. Essa ajuda é obviamente necessária, mas não
trará soluções se não vier acoplada a ações para solucionar o problema
em médio e longo prazos. O conhecimento científico acumulado e a
tecnologia existente já não permitem mais culpar a natureza pelas
catástrofes anunciadas. A raiz do problema é mais profunda.
Nas várias leis federais que regulam o uso da água no Brasil, é
encontrado com frequência o termo técnico ‘recursos hídricos’, mas este
não é definido. Quais são os recursos hídricos brasileiros? Na discussão
sobre o novo Código Florestal, entre 2011 e 2012, não foi considerado o
impacto de várias alterações relacionadas à questão dos recursos
hídricos. Descartou-se, por exemplo, o argumento de que as chamadas
áreas úmidas atuam como esponjas, estocando água em excesso em períodos
de chuva e liberando essa água durante épocas secas. Os alertas dos
cientistas de que a nova versão dessa lei reduziria dramaticamente a
proteção das áreas úmidas não foram considerados, alegando-se que não
existia uma definição brasileira do termo.
Diante das pressões do agronegócio, foi modificado, no novo Código
Florestal, o marco regulatório para a proteção das margens dos rios.
Esse marco passou a ser o ‘nível regular’ da água (ou seja, a calha
normal do rio), enquanto no Código anterior era a média dos níveis
máximos das cheias. A história mostra que as catástrofes econômicas e
sociais ocorrem sempre durante as secas e inundações extremas, e que
enchentes grandes atingem com maior frequência a população mais pobre,
que ocupa as áreas de risco, mais próximas dos rios, por falta de outras
opções.
Inundações e secas catastróficas vêm sendo aceitas pela maioria dos
políticos como forças superiores, fora de seu controle. Na realidade, a
legislação brasileira que regula o manejo e a proteção dos recursos
hídricos é inadequada, permitindo variadas interpretações, conforme o
interesse de grupos econômicos.
O novo Código Florestal, apoiado pelo agronegócio, permite a
destruição acelerada das áreas úmidas, fundamentais no ciclo
hidrológico, e abre caminho para a colonização, pela população de baixa
renda, de grande extensão de áreas sujeitas ao risco de inundações
catastróficas. Essa população cobra do governo indenizações, quando
vitimada, o que significa dizer que os lucros dos grupos interessados na
ocupação das terras das áreas úmidas vão para a iniciativa privada, mas
os prejuízos recaem sobre os cofres públicos, ou seja, sobre o conjunto
dos contribuintes.
Há saída?
Afinal, qual é a saída para o problema? Em primeiro lugar, é urgente
que o Brasil atualize sua legislação sobre o manejo de seus recursos
hídricos, incluindo no texto legal as áreas úmidas como parte
importantíssima do ciclo hidrológico. Para isso, é necessária uma
definição oficial, cientificamente correta, do termo ‘recursos
hídricos’.
Tal definição já foi feita por um grupo de especialistas e
encaminhada, no final de 2013, ao Ministério do Meio Ambiente (MMA):
“Recursos hídricos abrangem a água de chuva e todos os corpos de água,
naturais e artificiais, superficiais e subterrâneos, continentais,
costeiros e marinhos, de água doce, salobra e salgada, parados (lagos e
águas represadas) e correntes (rios – intermitentes, efêmeros ou perenes
– e seus afluentes, hidrovias e canais artificiais), e todos os tipos
de áreas úmidas, permanentes e temporárias”. O estudo foi publicado em Aquatic Conservation, v. 24, p. 5, 2014.
Além disso, é preciso definir e delinear as áreas úmidas do país. No
mesmo trabalho, o grupo de especialistas também propõe uma definição
para a extensão das áreas úmidas: “A extensão de uma área úmida é
determinada pelo limite da inundação rasa ou do encharcamento permanente
ou periódico, ou, no caso de áreas sujeitas aos pulsos de inundação,
pelo limite da influência das inundações médias máximas, incluindo-se
aí, se existentes, áreas permanentemente secas em seu interior, hábitats
vitais para a manutenção da integridade funcional e da biodiversidade
das mesmas. Os limites externos são indicados pela ausência de solo
hidromórfico e/ou pela ausência permanente ou periódica de hidrófitas
e/ou de espécies lenhosas adaptadas a solos periodicamente encharcados”.
Falta aplicar essas definições na legislação nacional.
O Brasil necessita ainda classificar suas áreas úmidas, trabalho
parcialmente feito ou em andamento. Sabe-se que cerca de 20% do
território brasileiro corresponde a áreas úmidas, diferentemente de
dados anteriores que indicavam apenas entre 4% e 7%. Esse conhecimento
deve ser introduzido nas leis.
Falta realizar um levantamento detalhado dos macro-hábitats das áreas
úmidas brasileiras, incluindo sua descrição ecológica. Essa tarefa é
difícil e precisa do apoio do governo, pois a maioria das áreas úmidas é
de pequeno porte e seu levantamento é demorado e caro, mas vital.
Finalmente, é necessária uma legislação específica para o manejo
sustentável e a proteção das áreas úmidas. Essa tarefa é
multidisciplinar e exige a liderança de um ministério – por exemplo, o
do Meio Ambiente, com seu braço prático, a Agência Nacional de Águas. Os
cientistas já têm dados à disposição e estão plenamente interessados em
cooperar nessa tarefa importantíssima.
Enquanto esses problemas não forem resolvidos, continuaremos a sofrer
secas e inundações dramáticas, além da falta de água potável, com danos
econômicos e sociais crescentes. Quadro incompatível com o país que
detém o maior sistema fluvial do mundo!Wolfgang J. Junk
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (INAU)
Universidade Federal de Mato Grosso
Maria Teresa Fernandez PiedadeInstituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)
Ennio CandottiMuseu da Amazônia
Fonte: Instituto Ciência Hoje