De um lado, o aquecimento do mercado da construção civil e o aumento da demanda por materiais. De outro, toneladas de cinza de bagaço de cana-de-açúcar que sobram da queima nas caldeiras das usinas sucroalcooleiras em todo o Brasil. Uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) conseguiu unir os dois fatores e dar um destino ambientalmente adequado a esses resíduos, utilizando-os como substitutos de parte da areia usada na preparação de argamassa e concreto.
Amplamente empregados na construção civil, a argamassa e o concreto são constituídos por uma mistura de materiais. A argamassa agrega cimento, areia e água e é aplicada no assentamento de tijolos e pisos, no revestimento de paredes e na impermeabilização e acabamento de superfícies. Já o concreto, utilizado em aplicações estruturais, é a combinação da argamassa com pedra britada. No estudo, os pesquisadores da UFSCar verificaram que a substituição de 30% a 50% em massa da areia pelas cinzas de bagaço de cana mantém as propriedades físicas e mecânicas das misturas e ainda traz ganhos de resistência.
Simples e barato - O crescimento da produção de açúcar e, sobretudo, de etanol, nos últimos anos, vem aumentando consideravelmente o volume de bagaço de cana que sobra do processo industrial. Atualmente, muitas usinas já usam o resíduo para gerar energia elétrica nas caldeiras, que servem ao consumo próprio e à venda a terceiros. Mesmo assim, esse procedimento ainda deixa restos. Por ano, são 3,8 milhões de toneladas de cinzas de bagaço de cana-de-açúcar que precisam ser descartados, geralmente em aterros sanitários.
As cinzas também têm origem no modelo agrícola adotado nas plantações. Embora cerca de metade da colheita da cana já seja mecanizada, a prática da queima da palha do vegetal ainda é bastante corrente. Muitas vezes, as cinzas são misturadas à terra como adubo, mas não têm ação eficaz por serem um resíduo inerte.
Há anos estudando formas de substituir os agregados naturais usados na argamassa e no concreto por soluções ecologicamente corretas, o engenheiro civil Almir Sales, coordenador da pesquisa da UFSCar, viu nessas verdadeiras montanhas de resíduos um grande potencial. Uma caracterização física microscópica mostrou que as cinzas do bagaço de cana têm um perfil bastante próximo ao da areia natural, com uma porção cristalina e alto teor de sílica. Sales e sua equipe (composta por uma doutoranda e cinco alunos de iniciação científica) constataram que a troca seria uma boa maneira de ajudar a diminuir o impacto ambiental no leito dos rios, de onde a areia é extraída.
O processo de retirada da areia causa a degradação ambiental de todo o ecossistema presente no curso de água. Por causa disso, algumas licenças para extração já estão sendo cassadas, o que diminui a oferta do agregado no mercado, elevando seu preço - explica o engenheiro civil.
Para tornar as cinzas aptas à substituição, a equipe desenvolveu um método de processamento simples e de baixo custo. Primeiro, foi realizado um peneiramento dos resíduos para separar pedaços de bagaço mal queimados. A etapa, no entanto, é dispensável quando as cinzas provêm de usinas cujos fornos são preparados para a produção eficiente de energia elétrica e queimam o bagaço completamente. Em seguida, foi feita uma pequena moagem para o acerto granulométrico, de forma que os grãos da cinza ficassem com tamanho semelhante aos de areia.
Segundo Sales, o concreto fabricado com as cinzas do bagaço de cana apresentou ganho de resistência de até 15% em relação à mistura com areia.
"A vantagem se deve às propriedades de compactação e empacotamento dos grãos de cinzas que, por serem mais uniformes, têm preenchimento melhor do que os de areia natural", afirma.
Agora, os pesquisadores estão testando a durabilidade do concreto alternativo. Por 12 meses, será observado o desgaste ocorrido em condições naturais e em uma câmara que acelera o intemperismo. Essa fase do estudo será essencial também para concluir se as misturas feitas com cinzas são capazes de evitar a corrosão das estruturas de aço usadas nas construções da mesma forma que o concreto tradicional.
"Os resultados preliminares são animadores", garante Sales.
O objetivo da equipe é introduzir a inovação no mercado da construção civil por meio das prefeituras. A ideia é estimular primeiramente o uso do concreto de cinzas na infraestrutura urbana, na construção de sarjetas, meio-fios e bocas de lobo, por exemplo.
Alternativa à brita - Esse não foi o primeiro projeto desenvolvido por Sales com a meta de encontrar uma alternativa tecnológica aos materiais comumente empregados na construção civil. Em estudo anterior, o engenheiro descobriu um composto que pode substituir a pedra britada no concreto. Trata-se de um agregado artificial feito com serragem de madeira e lodo de estações de tratamento de água (resíduo que se deposita no fundo dos tanques de decantação, onde se separa os sedimentos do líquido por meio da ação do sulfato de alumínio).
A substituição da pedra por esse composto deixou o concreto 30% mais leve e com condutividade térmica mais baixa.
"Por ter menos resistência, esse concreto não pode ser utilizado em estruturas. Mas é ideal para o enchimento de lajes de casas térreas, até mesmo por reduzir o aquecimento, minimizando o uso de aparelhos de ar-condicionado para refrigeração e poupando energia", defende Sales.
Para o professor da UFSCar, é preciso repensar a forma como o homem se relaciona com a natureza atualmente.
"Não adianta termos conforto hoje se isso implica a destruição do meio ambiente e, em consequência, maior escassez de recursos naturais no futuro", argumenta Sales. "Se agora é inusitado usar cinzas de bagaço de cana-de-açúcar ou outro agregado artificial na composição do concreto, meu objetivo é fazer com que, em breve, o diferente seja empregar materiais tradicionais e não sustentáveis", conclui.
Fonte: Diário do Grande ABC
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