Serão necessários R$ 20 bilhões por ano, durante 10 anos,para a população ter acesso a água e tratamento de esgoto
As carências brasileiras de saneamento básico, como se sabe, constituem enorme desafio. As estimativas indicam que serão necessários investimentos de 20 bilhões de reais por ano, durante 10 anos, para que a população tenha acesso a água e coleta e tratamento de esgoto.
Evidentemente o Estado não terá recursos para tanto. Assim, aumentam os casos de concessão desse serviço público a empresas privadas, mediante licitação. Sendo o serviço municipal, já são vários os municípios que tomam a iniciativa de interessar investidores privados no que pode ser para eles uma oportunidade de negócio.
Nesse contexto fático é que importa analisar a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que constitui o marco federal sobre o tema e que ainda não foi regulada por decreto do Poder Executivo que cobrisse as suas lacunas de execução, algumas delas assumindo importância para a prática cotidiana do contrato de concessão.
O referido diploma legal, em seu artigo 2º, traz os princípios fundamentais da prestação dos serviços, entre os quais incumbe destacar a "universalidade de acesso" (inciso I), a "disponibilidade" (inciso IV) e a "eficiência e sustentação econômica" (inciso VII).
Quando celebra o contrato de concessão, o Estado não transfere o serviço, pois isso seria constitucionalmente proibido, mas apenas delega a sua execução, mantendo-se como responsável final. O concessionário, a seu turno, se obriga a executar as obras e os serviços previstos no contrato segundo volumes e cronograma dele constante. Portanto, a "universalidade" e a "disponibilidade" só serão alcançadas depois de cumprido o cronograma, que tem natureza técnica, independentemente de seu custo. A jurisprudência tem tido dificuldade de lidar com as questões que decorrem do não-atendimento a esses dois requisitos, havendo julgados que obrigam os concessionários a atender usuários, ainda que não haja rede instalada, pois sua construção nos termos do contrato só ocorreria depois de certo tempo.
Uma discussão que tem havido é a da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos usuários, especialmente seus artigos 22 (continuidade do serviço essencial) e 42 (impossibilidade de constrangimento em casos de interrupção do serviço). Para uma corrente, a presença desses dois dispositivos faria com que a concessionária não pudesse se furtar da obrigação de fornecer água, ainda que a rede não estivesse pronta ou o consumidor a ela ligado.
Para outro grupo, sendo o CDC uma norma geral e a Lei nº 11.445 uma lei especial, deve ser aplicada a que regula o assunto especificamente. Mesmo esse grupo, entretanto, reconhece a aplicabilidade do CDC, variando apenas a sua intensidade. Ora, essa aplicabilidade viria a reforçar a idéia de que o usuário tem direito ao serviço em qualquer hipótese.
O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (Adin, nº 2.340-3/ Santa Catarina), por apertada votação de seis contra cinco, com a presença de sete ministros que já deixaram o Tribunal (a indicar a possibilidade de mudança de entendimento por uma nova composição) e pela qual julgou inconstitucional lei estadual que impunha, entre outras, a obrigação de que a concessionária prestasse o serviço em qualquer hipótese, uma vez que estaria "obrigado" a fazê-lo, como braço do próprio Estado. A decisão foi pela inconstitucionalidade da lei, com base no entendimento de que, sendo a matéria municipal, não poderia o estado federado regulá-la. Assim, o tribunal não enfrentou o problema da obrigação de fornecimento sem a existência de previsão no contrato de concessão.
Parece-nos evidente que o Judiciário não tem o poder de determinar à concessionária que infrinja o seu contrato administrativo de concessão celebrado com o poder público, fornecendo um serviço para o qual não está preparada. Além dos princípios da "universalidade" e da "disponibilidade", antes referidos, existe o da "eficiência e sustentação econômica", que estaria violado se o equilíbrio econômico e financeiro da concessão fosse quebrado. Mas, por outro lado, os tribunais são sensíveis a apelos dos usuários, em especial daqueles que não têm condições de acesso à água ou que vivem em condições precárias nesse particular. Muitas decisões acabam por determinar que a concessionária preste o serviço, ainda que não previsto em seu contrato. Essa situação tem gerado um impasse. Uma alternativa de solução é a de indenizar a concessionária pelo custo que exceda o contrato de concessão, o que, se houver concordância de ambas as partes, é plenamente possível e legal.
Por outro lado, há que se levar em conta os poderes das agências reguladoras. Nesse terreno, existe a Agência Nacional de Águas (ANA), entidade federal de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, criada pela Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000. Além dela, vários estados têm as suas agências, assim como vários municípios. O poder desses órgãos afetos ao Poder Executivo, entre outros, é o de justamente regrar situações que não estejam previstas expressamente em lei, concorrendo para a boa prestação do serviço. Podem e devem elas prever as situações em que não haja disponibilidade do serviço e como lidar com essas situações. As decisões das agências, em sua parte material, devem ser preservadas pelo Poder Judiciário, pois só assim construiremos os marcos de regulação do setor, indispensáveis para a clareza e para a estabilidade de suas normas.
Fonte: Diário do Comércio /Assemae
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