quarta-feira, 5 de maio de 2010

Teorias socioambientais: em busca de uma nova sociedade.

Artigo de Wagner Costa Ribeiro

NO DEBATE ACADÊMICO é frequente buscar a explicação pelo surgimento de um tema de pesquisa. Não foi diferente com a chamada questão ambiental, que desde meados do século XX ganha cada vez mais destaque. Por isso é bom lembrar as razões que a tornaram obrigatória em discussões de políticos, empresários, pesquisadores e de alguns setores dos movimentos sociais.

Vinculada à condição de ser no mundo, a questão ambiental é fundamental à existência humana, pois é do ambiente que provém a base material de reprodução da vida, aliás, das diversas formas de vida. Em outras palavras, é do ambiente que são extraídos os recursos para produção de abrigo, alimento, artefatos técnicos, vestuário, entre tantas outras coisas necessárias à manutenção da vida, qualquer que seja a forma de organização social que os humanos estabeleceram ao longo de milhares de anos de presença no planeta.

A história registrou alterações importantes na trajetória humana na Terra. Passou-se da condição de coletor para a de produtor de objetos, de alimentos e de ambientes, no interior dos quais se exercem as distintas formas de sociabilidade, independentemente da estrutura social que o grupo instituiu.

A questão ambiental é fundamental à existência humana, é preciso insistir, já que ela possui uma dimensão territorial implícita. Os recursos estão dispersos pela superfície terrestre, como resultado de processos naturais de milhões de anos, e são apropriados pelos grupos sociais de acordo com sua capacidade de gerar instrumentos técnicos, o que a torna, em si, foco de poder, disputa e conflitos.

A reprodução da vida impõe ações como comer, abrigar-se de intempéries, edificar lugares para produzir objetos, como as fábricas contemporâneas, para exercer a contemplação ou mesmo para o lazer, para realizar eventos sociais, religiosos, míticos, entre outras significações que se possam emprestar a uma edificação. Essas atividades foram transformadas ao longo da aventura humana na Terra e ganharam enorme complexidade em nossos dias.

Os alimentos, por exemplo, eram supridos no passado pela coleta do que estava ao alcance das mãos, fosse no chão ou no alto. Depois, o uso de fragmentos de rochas e ossos permitiu abater animais e gerar fogo. Hoje, o alimento é resultado do uso de sofisticados meios técnicos, como tratores, colheitadeiras, sistemas de irrigação e insumos químicos que repõem características físicas do solo e agregam substâncias para aumentar a produtividade que acabam degradando a água e mesmo o solo pelo acúmulo de anos de sua utilização. Também é importante citar as formas de conservação de alimentos, que variam desde a irradiação de elementos nucleares até o congelamento ou mesmo adição de substâncias químicas que, comparadas à imersão em gordura animal ou mesmo à adição de sal realizadas no passado, indicam uma grande transformação.

A produção de roupas é outro exemplo que deve ser lembrado. Independentemente da dimensão cultural e estética que se pode atribuir ao vestuário, suas funções de proteger e emprestar significado à existência humana permanecem. Mas os meios usados para produzir o tecido são bastante diferentes. Da manipulação direta de pele de animais, em nossos dias encontram-se fios que misturam elementos químicos e resultam em materiais resistentes a baixas temperaturas e ao fogo, ainda que por alguns minutos, com elevada flexibilidade, entre outros atributos. Note-se que o uso do petróleo é central na produção de fios sintéticos, por exemplo, que muitas vezes é misturado a fibras vegetais, como o algodão.

Em relação à produção de ambientes, a situação não é diferente. O conjunto de materiais disponível para uso na construção civil é muito maior que no passado. Mais uma vez tem-se uma mistura de elementos químicos que resultou em materiais mais leves, duráveis e resistentes a chuva, frio, calor e até a eventos extremos de curta duração, como terremotos de média intensidade. A padronização de processos construtivos permite que um prédio de 20 andares seja edificado e concluído em cerca de dois anos. O mesmo se pode escrever para a produção de vias, sejam ruas, viadutos e, especialmente, pontes suspensas, que agregaram simbolismos à simples circulação de veículos e pessoas, por exemplo, e iniciaram uma nova disputa: no passado recente, um município brasileiro precisava ter um viaduto para indicar “progresso”. A estetização da produção dos objetos urbanos contemporânea exige pontes suspensas como novos cartões postais, não importando seu custo, evidentemente. À população resta usufruir como pode de tais obras de engenharia com apelo simbólico da capacidade técnica de superar obstáculos, já que é quem paga a conta de quem decidiu por esse meio técnico em vez de adotar outros mais acessíveis.

Não bastassem os aspectos citados, a produção de objetos na dimensão capitalista predominante também torna o ambiente um fator central para a reprodução do capital. Um modo de produção baseado na produção contínua de objetos, que os torna passíveis de ser descartados mesmo que em total condição de uso, necessita repor a base material usada para fabricá-los. E de muita energia para alterar as condições naturais dos recursos naturais, como a bauxita, e transformá-la em objetos complexos como aeronaves, satélites, ou em folhas finas que recobrem alimentos, como os chocolates.

Uma das maiores dificuldades será manter essa produção diante de uma oferta restrita de recursos não renováveis. Não é por outra razão que o desenvolvimento dos chamados novos materiais, que combina química fina e biotecnologia, é tão premente. A ideia é repor a base material da produção independente da herança dos processos naturais e criar materiais em laboratório de modo a controlar sua reprodução e se livrar da dependência dos recursos não renováveis.

O modo de produção capitalista também é responsável pela contaminação ambiental, pela degradação do solo e da água, já citados, mas também do ar. As primeiras chuvas ácidas, registradas em meados do século passado em áreas que não tinham indústrias, foram os indícios que apontaram a necessidade de pensar os problemas ambientais em uma dimensão territorial mais ampla. Ou seja, a contaminação atinge áreas muito afastadas dos pontos de emissão de poluentes, que são transportados pelos ventos.

O risco de contaminação pela poluição foi democratizado, apesar de os benefícios da produção capitalista continuarem privados. Em outras palavras, chegou-se àquilo que o sociólogo alemão Ulrich Beck (1986) cunhou como sociedade de risco, que banaliza os riscos tornando a convivência com eles algo natural. O risco passou a ser mensurado e foi apropriado pela acumulação capitalista, pois alimenta um amplo setor financeiro: os seguros.

Esse rol de problemas despertou atenção de muitos pesquisadores. Inicialmente eles dedicavam-se majoritariamente a entender a dinâmica dos processos naturais. Mas já no século XIX a geografia apresentava pistas de como encarar os problemas ao propor como objeto de estudo a relação sociedade-natureza, atualmente redefinida por muitos como socioambientalismo.

Foi a partir da Conferência do Rio, de 1992, que segmentos sociais que até então se criticavam mutuamente se congregaram em uma nova frente de ação política por meio do Fórum Brasileiro de Organizações Não Governamentais Preparatório para a Rio-92. O socioambientalismo surgiu da reunião de movimentos sociais e do movimento ambientalista, na segunda metade da década de 1980. A partir daí, observa-se um impulso na retomada e criação de teorias socioambientais, cujas matrizes centrais foram reunidas neste dossiê.

A sustentabilidade é um dos eixos centrais dessa discussão, abordada por um de seus principais formuladores, Ignacy Sachs. Em seu artigo, ele avança suas reflexões sobre a civilização do futuro, que deve ser sustentável, baseada em recursos renováveis e com inclusão social, por meio do desenvolvimento de camponeses. A bioenergia é uma de suas apostas, que deve contar, em seu entender, com um estado promotor de um outro tipo de desenvolvimento, que não deve ser medido apenas pelo crescimento do PIB.

José Eli da Veiga discute esse aspecto em seu texto. Ao analisar diversos indicadores ambientais, para muitos necessários para planejar ações e avaliar impactos das atividades humanas, o autor apresenta vários índices e seus respectivos problemas, incluindo o mais popular: a pegada ecológica. Ao final de seu artigo, afirma que medir a sustentabilidade não é o mesmo que avaliar qualidade de vida.

Durante muito tempo, a economia deixou de considerar os temas ambientais. Como bem demonstra Clóvis Cavalcanti, a incorporação da dimensão ambiental nos estudos da economia gerou uma diversidade de possibilidades, como a visão econômica da ecologia, que ele critica por meio de um diálogo muito rico com expoentes da economia ecológica, como Joan Martínez Alier (2007) e Nicholas Georgescu-Roegen, considerado um de seus formuladores iniciais.

Entre os desafios que as teorias socioambientais buscam tratar, está a conciliação do desenvolvimento inclusivo com a conservação ambiental. O movimento de justiça ambiental, por exemplo, buscou pautar a desigualdade social como eixo central de suas reivindicações, que é muito diferente da simples adoção do discurso ambiental, como demonstra muito bem Henri Acselrad em sua contribuição ao dossiê. A leitura de seu texto permite distinguir os discursos de vários segmentos sociais sobre o ambiente.

Por sua vez, José Augusto Pádua demonstra que a preocupação ambiental já estava presente no século XVIII. Porém, observa que foi a mobilização popular que despertou tantos interessados em analisar os problemas ambientais nas últimas décadas e que a história ambiental é resultado desse processo associado a uma importante renovação epistemológica na produção historiográfica.

Wagner Costa Ribeiro comenta que a ordem ambiental internacional tem sido favorável aos países mais pobres e com menos poder militar no mundo atual, ao contrário do que se costuma escrever. Ao analisar reuniões internacionais sobre o ambiente, observa que o ponto de vista dos países mais pobres foi vitorioso, razão pela qual enfatiza a importância das conferências e convenções promovidas pela ONU, apesar da resistência em implementá-las por países ricos que também são potências militares.

Essa coletânea não poderia deixar de comentar os resultados da mais importante rodada da ordem ambiental internacional de 2009: a reunião de Copenhague, realizada para estabelecer ajustes no controle de emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Sérgio Abranches apresenta uma análise precisa, na qual afirmou que aquele encontro permitiu avançar em alguns pontos, como a decisão de conter o aquecimento em até dois graus, apesar de ao mesmo tempo frustrar expectativas da opinião pública internacional.

Por fim, uma palavra sobre o grande homenageado por esse dossiê: o geó-grafo Aziz Ab’Sáber, pesquisador emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Além de inovador em sua contribuição científica sobre o ambiente, o professor Aziz é um exemplo de engajamento em lutas socioambientais.

De certa forma, esse conjunto de textos é um prolongamento do evento “Desafios socioambientais para o século XXI: homenagem a Aziz Ab’Sáber”, uma realização conjunta do Instituto de Estudos Avançados com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Associação dos Geógrafos Brasileiros e o Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ocorrido em outubro de 2009, que pode ser assistido na página http://www.iea.usp.br/iea/online/midiateca/ambiente /index.html.

Dividido em quatro eixos, o evento propiciou uma reflexão em distintas escalas. Na internacional, visou aprofundar o debate sobre a regulação das ações humanas em relação ao ambiente e avaliar a eficácia dos instrumentos em uso. Na escala nacional, avaliou o potencial e as oportunidades para o Brasil diante de um quadro de renovação tecnológica e de busca de fontes de energia alternativas. Na escala metropolitana, o modelo de reprodução do espaço geográfico que gerou condições socioambientais segregou a pobreza, apesar de difundir problemas ambientais a toda a população, como os que resultam da poluição atmosférica na metrópole paulistana.

Essa pauta exige soluções nos curto, médio e longo prazos. Cabe indagar como a Universidade pode contribuir na resolução desses problemas, que engendram a reprodução da vida, em suas diversas formas de expressão. Espera-se que este dossiê possa estimular mais pesquisas sobre os temas socioambientais que resultem em uma sociedade mais justa e equilibrada no acesso e nas consequências do uso dos recursos naturais.

Referências
BECK, U. La sociedad del riesgo. Madrid: Paidós, 1986.
MARTÍNEZ ALIER, J. Ecologismo dos pobres. São Paulo: Contexto, 2007.

Wagner Costa Ribeiro é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) e pesquisador do CNPq. @ – wribeiro{at}usp.br

Fonte: Potal Ecodebate

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